Giancarlo Polesello - ortopedista especialista em quadril

O quadril e a dor pélvica crônica, dor glútea profunda e “síndrome do piriforme”

Giancarlo Cavalli Polesello
Marcelo C. Queiroz
Walter Ricioli Jr.

As causas ortopédicas da dor pélvica crônica são motivo de confusão diagnóstica e terapêutica. Por esse motivo, a interação entre o especialista em abdome e pelve e o ortopedista, tanto especializado em quadril como em coluna é muito importante.

Do ponto de vista ortopédico, as principais dores que podem mesclar-se com a dor de origem abdomino-pélvica, são a síndrome da dor glútea profunda, o impacto femoroacetabular, pubalgias e a dor facetária lombar.

A falta de diagnóstico associado às múltiplas possíveis causas podem gerar confusão enorme. Equívocos terapêuticos são comuns e não raramente observamos pacientes que procuram inúmeros especialistas sem solução, sem diagnóstico, carregados com estresse físico e psicológico importante.
A síndrome da dor glútea profunda é entidade pouco e confusamente diagnosticada, caracterizada por dor e formigamento na região da área da nádega, quadril ou coxa posterior ou irradiada para baixo do joelho no território do nervo ciático.

Progressos no conhecimento da região glútea profunda e o conceito de bandas fibrosas causando sintomas pela diminuição da mobilidade do nervo ciático e sua compressão na região glútea profunda representam mudança radical na forma diagnóstica e terapêutica de abordar-se a dor glútea profunda.
A multiplicidade de afecções que podem causar este tipo de dor e o melhor conhecimento da anatomia fez com que o termo “síndrome do piriforme” tenha sido abandonado e adotado o termo síndrome da dor glútea profunda, que é o mais correto, pois múltiplas causas podem provocar dor nesta região. Dentre elas, destacamos a compressão do nervo ciático pelo músculo piriforme, a presença de bandas fibrosas, alterações no músculo e tendão do músculo obturador interno, dos músculos gêmeos e do músculo quadrado da coxa, alterações no espaço ísquio-femoral, alterações nos tendões e músculos isquiotibiais na região posterior da coxa, alterações vasculares na região glútea profunda e alterações do nervo pudendo.

Com o desenvolvimento da endoscopia periarticular do quadril na região glútea profunda, houve entendimento dos mecanismos pelos quais esta compressão acontece nos mais diversos pontos.
Observamos três regiões onde pode haver compressão causadora de dor glútea profunda.
Existem três corredores principais no espaço glúteo profundo:
O primeiro deles compreende o forame isquiático maior com as estruturas que dele emergem:

  • O nervo ciático
  • O nervo cutâneo femoral posterior
  • O nervo glúteo superior
  • O nervo glúteo inferior para o obturador interno
  • O nervo pudendo.

O segundo espaço situa-se no forame isquiático menor (cujos limites são a incisura isquiática menor, ligamento sacroespinhal e o ligamento sacrotuberal) e das estruturas em seu conteúdo:

  • Tendão do músculo obturador interno
  • Nervo para o músculo obturador interno
  • Vasos (artéria e veia) pudendos internos

Os dois corredores acima mencionados são visualizados na Figura 1.

Fig. 1- Vista posterior da pelve. Visualização dos espaços glúteos da incisura isquiática maior e menor.

Fig. 1- Vista posterior da pelve. Visualização dos espaços glúteos da incisura isquiática maior e menor.

O terceiro espaço está no túnel isquiofemoral. Esta região é compreendida entre o trocânter menor e o ísquio. Neste local pode ocorrer a compressão das estruturas entre estes ossos, correlacionado a dor lateral ao isquio (impacto isquiofemoral) Figura 2. Dores para dentro do isquio podem ocorrer por compressão do nervo pudendo e também deve ser pensada como fonte de dor nesse local.

Fig 2 . Vista posterior da região do quadril identificando o túnel isquiofemoral, localizado entre as regiões do isquio e trocânter menor (setas vermelhas).

Fig 2 . Vista posterior da região do quadril identificando o túnel isquiofemoral, localizado entre as regiões do isquio e trocânter menor (setas vermelhas).

A variabilidade anatômica do posicionamento do ciático com relação ao músculo piriforme também pode ser fonte de dor, podendo ocorrer em até 16,9% da população. Figura 3.

Fig 3. Relação entre músculo piriforme e nervo ciático. a)Único e posterior, b)Dividido através e abaixo, c)Dividido acima e abaixo, d)Único entre as cabeças dos músculos, e)Dividido através e acima, f)Único acima.

Fig 3. Relação entre músculo piriforme e nervo ciático. a)Único e posterior, b)Dividido através e abaixo, c)Dividido acima e abaixo, d)Único entre as cabeças dos músculos, e)Dividido através e acima, f)Único acima.

 
O exame clínico desses pacientes é difícil, pois os sintomas são imprecisos, geralmente são caracterizados por gama de sintomas e dados de exame físico que acontecem de forma isolada ou em combinação, podendo confundir com outras dores da região lombar, intra ou extra articular do quadril. Muitos dos sintomas não melhoram com os tratamentos e muitas vezes os pacientes requerem altas doses de medicações narcóticas para controlar a sua dor.

Mais comumente os sintomas são de dor na nádega ou no quadril e hipersensibilidade na região glútea e posterior do trocanter maior do tipo ciática unilateral (algumas vezes bilateral) e exacerbada com a rotação do quadril flexionado e extensão do joelho. Observa-se também intolerância para sentar-se na mesma posição por mais de vinte ou trinta minutos (figura 4). Claudicação, perda de força ou parestesias na região da extremidade afetada também podem estar presentes.

Fig 4. Paciente sentada apoiada no lado assintomático. Observe que paciente não mantém apoio no lado afetado.

Fig 4. Paciente sentada apoiada no lado assintomático. Observe que paciente não mantém apoio no lado afetado.

Muitos destes pacientes têm história de uma ou mais cirurgias na coluna vertebral. Figura 5.

Figura 5. Figura mostrando várias incisões na coluna devido diagnóstico impreciso e consequentemente, tratamento inadequado.

Figura 5. Figura mostrando várias incisões na coluna devido diagnóstico impreciso e consequentemente, tratamento inadequado.

No exame clínico o médico deve examinar a paciente em posição sentada, rodando interno passivamente o quadril e palpando a região glútea profunda com a mão (figura 6). Também pode se usar o teste de PACE onde o examinador o faz com o paciente de lado, palpa a região glútea profunda e faz o paciente abduzir o membro (figura 7) onde observa se a contratura do piriforme vai provocar dor na região glútea profunda. Outra opção seria abduzir o membro com o calcanhar encostado na maca.

Fig 6*. Manobra realizada com paciente sentado

Fig 6*. Manobra realizada com paciente sentado

Fig 7 *. Manobra realizada com paciente em decúbito lateral (teste de PACE)

Fig 7 *. Manobra realizada com paciente em decúbito lateral (teste de PACE)

*(fotos cedidas pelo Dr. Hal Martin).
É importante salientar que a coluna vertebral e afecções dentro da pelve são as principais fontes desse tipo de dor e o diagnóstico das dores na região glútea profunda é exceção, ou seja, quando todos os diagnósticos de dor que possam ser provenientes da pelve do abdômen e da coluna foram excluídos o ortopedista provavelmente será o último especialista a ver este paciente.

Um amplo espectro de patologias conhecidas podem não especificamente estar localizados na região glútea profunda e ser pontos de dor ou causar dor nesta região.

Estes pontos podem ser traumáticos e iatrogênicos, infecciosos, vasculares, ginecológicos, tumorais ou pseudotumorais. Por ser mais rara a dor glútea profunda geralmente tem sido subdiagnosticada, inclusive nos exames de imagens tanto por conta da pouca sensibilidade dos exames como pelo maior conhecimento dos radiologistas em relação aos exames de coluna, sendo pouco considerado que as alterações no nervo ciático podem resultar de uma compressão intrapélvica ou extrapélvica dentro do espaço glúteo profundo.

Como diagnóstico por imagem a ressonância magnética convencional é a escolha sendo que as alterações da morfologia do nervo ciático são visualizados melhor na ponderação de T2 ou ESTIR e podem estar relacionadas a lesão neural, entretanto, o hipersinal no nervo ciático nem sempre indica doença do mesmo, além disso a presença de fíbras neuro vasculares é melhor diagnosticada em reconstruções em três dimensões do que   ao longo do trajeto do nervo usando reconstruções multiplanares. Ou seja, a realização de ressonância magnética convencional da bacia ou do quadril geralmente não é adequada para a visibilização do trajeto do nervo ciático e as possíveis interações com as estruturas potencialmente causadoras de dor glútea profunda. Para esta finalidade é necessária a solicitação de neurografia do nervo ciático.

Assim, os radiologistas devem estar cientes da anatomia e das condições patológicas nesse espaço, além de conhecer a forma de se realizar a aquisição das imagens para neurografia do nervo ciático conforme evidenciado na figura 8.

Fig 8. Observe na neurografia por Ressonância magnética a diferença entre os 2 lados: no lado direito, toda massa do músculo piriforme está somente de um lado; enquanto que do lado esquerdo, 2/3 estão de um lado e 1/3 do outro, mostrando claramente uma fenda no nervo, o que explica o quadro clínico.

Fig 8. Observe na neurografia por Ressonância magnética a diferença entre os 2 lados: no lado direito, toda massa do músculo piriforme está somente de um lado; enquanto que do lado esquerdo, 2/3 estão de um lado e 1/3 do outro, mostrando claramente uma fenda no nervo, o que explica o quadro clínico.

O teste terapêutico com infiltração pode ser guiado por tomografia, radioscopia ou por ultrassonografia. As injeções guiadas são realizadas com o paciente em decúbito ventral e se pode injetar anestésico e solução salina, ou anestésico, solução salina e corticosteroides. É um valioso teste de diagnóstico, sendo também em muitos casos, terapêutico.

Como tratamento, o desenvolvimento da endoscopia peri-articular do quadril permitiu o conhecimento da fisiologia das compressões (figura 9) que podem acontecer nessa região e muito foi aprendido desde então, além de permitir o tratamento quando o correto diagnóstico for realizado.

Figura 9. Endoscopia periarticular evidenciando na flecha preta o nervo ciático e com a flecha azul o musculo piriforme. Observe que na última imagem é evidente a musculatura atravessando o nervo pelo meio.

Figura 9. Endoscopia periarticular evidenciando na flecha preta o nervo ciático e com a flecha azul o musculo piriforme. Observe que na última imagem é evidente a musculatura atravessando o nervo pelo meio.

Resumindo:
A síndrome da dor glútea profunda é entidade que deve ser melhor reconhecida. Sua etiologia é multifatorial, mas as duas principais e pouco diagnosticadas causas são: Bandas fibrovasculares e compressão do nervo relacionado com os músculos rotadores externo do quadril, que podem incluir o musculo piriforme.

A síndrome do piriforme como antigamente chamada pode ser citada como subgrupo da síndrome glútea profunda, significando que nem todas as síndromes da dor glútea profunda são síndrome do piriforme.

Os testes terapêuticos podem ser realizados para esclarecer o diagnóstico e a imagem de ressonância magnética com neurografia é atualmente o exame de escolha e pode influenciar substancialmente o diagnóstico e o manejo desses pacientes.

A descompressão endoscópica do nervo parece ser útil, pois acarreta na melhora da função e diminui a dor desses pacientes.

A anatomia local e as condições patológicas que causam dores nesse espaço podem confundir os especialistas.

Referências:
1)Fishman LM, Dombi GW, Michaelsen C, Ringel S, Rozbruch J, Rosner B, Weber C. Piriformis syndrome: diagnosis, treatment, and outcome–a 10-year study. Arch Phys Med Rehabil. 2002 Mar;83(3):295-301.
2)Gomes BA, Ramos MR, Fiorelli RK, Almeida CR. Topographic anatomical study of the sciatic nerve relationship to the posterior portal in hip arthroscopy. Col Bras Cir. 2014 Nov-Dec;41(6):440-4.
3) Khaled Meknas, Anders Christensen, Oddmund Johansen. The internal obturator muscle may cause sciatic pain. Pain 104 (2003) 375–380.
4) Hussain A, Erdek M. Interventional pain management for failed back surgery syndrome. Pain Pract. 2014 Jan;14(1):64-78. doi: 10.1111/papr.12035. Epub 2013 Feb 3. Review.
5) Williams EH, Wang KC, Dellon AL, Carrino JA. MR neurography of neuromas related to nerve injury and entrapment with surgical correlation. AJNR Am J Neuroradiol. 2010 Sep;31(8):1363-8. doi: 10.3174/ajnr.A2002. Epub 2010 Feb 4. Review
6) Hal D. Martin, D.O., Shea A. Shears, B.S.N., R.N., J. Calvin Johnson, M.D., Aaron M. Smathers, M.S., and Ian J. Palmer. The Endoscopic Treatment of Sciatic Nerve Entrapment/Deep Gluteal Syndrome. Arthroscopy: The Journal of Arthroscopic and Related Surgery, Vol 27, No 2 (February), 2011: pp 172-181
7) Igarashi A, Kikuchi S, Konno S. Correlation between inflammatory cytokines released from the lumbar facet joint tissue and symptoms in degenerative lumbar spinal disorders.J Orthop Sci. 2007 Mar;12(2):154-60. Epub 2007 Mar 30.
8) Revel M. Lumbar osteoarthritis. Rev Prat. 1996 Nov 15;46(18):2212-7. Review. French.

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